Chela e Chiquita, juntas há trinta anos, são herdeiras da aristocracia de Assunção, que já viveu áureos tempos, mas, atualmente, em franca decadência, que, endividadas, vendem seus espólios para subsistirem. Quando Chiquita vai para a prisão, acusada de fraude, Chela, dependente, submissa e frágil, forçada a encarar a difícil realidade, vislumbra possibilidades que, anteriormente, jamais cogitaria. O roteiro de Marcelo Martinessi, que também assina a direção, é preciso e delicado, estabelecendo, clara e sutilmente, as premissas sob as quais a trama se desenvolve, a conjuntura social – uma ex-classe dominante, ainda arrogante, orgulhosa e senhoria, que, de um lado, reserva, e, do outro, disfarça não perceber os constragimentos insurgidos de seus preconceitos, a homossexualidade, as dívidas, a prisão, a decadência, evidenciando a hipocrisia latente que marca os seus comportamentos; a emocional – Chiquita e Chela, a primeira forte e dominante, a segunda frágil e submissa, acostumadas com a abundância e despreparadas para uma vida minguada, mas ainda lutando para manter as tão escudadas aparências; e a realidade de uma sociedade que abandonou os seus valores e onde o poder econômico e a influência permutaram a sua posse para uma classe, sem pompa ou circunstância, mas que, agora, adquire suas heranças.
Evolui, também, a trama de Chela, após a prisão de Chiquita, que percebe o mundo e novas possibilidades, quando Pituca, sua vizinha, pede-lhe um “obséquio”, uma carona, e passa a dirigir para subsistir, mas ainda mantendo as aparências. Delicadamente, Marcelo ilustra as transformações da personagem, estabelecendo suas novas relações com a comunidade homossexual, com sua parceira, com sua empregada e com Angy, também senhoria e embebida nos mesmos paradigmas, mas de uma geração posterior, que já não valoriza tanto seus costumes como suas antecessoras, que despertará desejos em Chela. Percebe-se com nitidez as tensões cênicas estabelecendo os conflitos, que impulsionam as ações, que evoluem a história, como, também, uma sútil tonalidade tragicômica imbuída no drama. A direção, excelente, é muito feliz nos enquadramentos, observem, nas cenas de Chela ao volante, as diferentes escolhas em um mesmo cenário, além de ser firme na condução das atrizes. O elenco, composto basicamente por mulheres, é formidável, realce para Ana Brun, a Chela, que robustece a delicadeza do texto com justas tensões cênicas. A fotografia e a arte, ótimas, acentuam o tom decadente do enredo, a música reforça os conflitos, e a edição é competente.
Um belíssimo retrato de uma sociedade em declínio, descendente dos escravagistas, simultaneamente, senhoria e hipócrita, lutando por sua sobrevivência, nos traz As Herdeiras, de Marcelo Martinessi. Imperdível. PS: Em cartaz.
TRAILER