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  • Foto do escritorFábio Ruiz

A Forma da Água – EUA – 2017

Atualizado: 18 de ago. de 2020


O Mal e o Bem, como qualquer outra coisa, situam-se, exclusivamente, na cabeça, no coração, nos olhos e na alma daqueles que os veem. Como a água que ostenta a forma do continente e o abraça, nossos pensamentos e ações moldam o talhe de nosso caráter, de nossa índole, de nosso ser ou não ser, e nos esculpem. Reside nesse lugar o mérito do dilema Shakespeariano. Eis a questão! Quem somos e como atuamos nós diante das estranhezas, ou surpresas, com que o mundo nos presenteia? E, se o que o mundo nos exibe é algo tão absurdamente diferente, único e extraordinário? Um hiato para reflexão – como vocês, leitores, comportam-se ou comportar-se-iam perante ao singular e diante do fantástico? A Forma da Água, de Guillermo del Toro, versa, hábil e delicadamente, sobre esse enigma.

A fábula emerge da água e na água se consuma. Eliza é faxineira de uma instalação secreta americana em Baltimore nos anos sessenta, mora em um peculiar apartamento sobre um cinema, e seus hábitos, meticulosamente, se reprisam com a precisão de um relógio suíço: acordar; fazer o café, seu e de seu vizinho; tomar banho; masturbar-se na banheira; se vestir; pegar o ônibus; ir trabalhar; voltar; encostar a cabeça na janela do coletivo e cochilar; entreter-se com seu vizinho, etc. Até que uma criatura aquática sobrenatural adentra a sua história e a transforma radicalmente. E, sem delongas, encerro maiores detalhes para não danificar os regalos.

O mote da trama reside na questão proposta no primeiro parágrafo, pura e simples. Como cada uma das personagens se comportará diante deste ser, que pode ser ao mesmo tempo doce e violento, cruel e curandeiro, diferente e bonito? Alguns o admiram sem intentos, outros com, e ainda há outros que o abominam e desejam o exterminar.

Não pífia é a composição de cada círculo: Eliza, interpretada por Sally Hawkins, uma mulher de beleza peculiar e distante do padrão anoréxico da atualidade, que, além de tudo, é muda; Giles, personagem de Richard Jenkins, seu vizinho homossexual, idoso e incapaz de consumar seus desejos; e Zelda, de Octavia Spencer, negra, também faxineira e casada com um homem abusivo e explorador. Os três, sem propósitos calculados, veem na criatura o signo de suas desventuras, as suas próprias extrapolações, e, imediatamente, as afinidades são percebidas e a simpatia elaborada. Toro muito perspicaz e habilidosamente consegue retratar com incrível brandura e dignidade, sem qualquer sinal de pieguices, as adversidades e os infortúnios que os três, apenas por serem o que são, bravamente vivenciam. O cientista e espião russo Hoffstetler/Dimitri admira o homem-anfíbio e o defende apenas com caráter instrutivo, não deixando claras as suas intenções após a aquisição dos conhecimentos se encerrar. Já Strickland, interpretado por Michael Shannon, o General Hoyt e os contatos russos de Hoffsteller, Bernard e Mihalkov, temem a criatura e tudo o que ela engloba e representa e desejam destrui-la.

Mais uma quebra para a reflexão. Vocês são capazes relacionar os cenários descritos com a atualidade brasileira? Especialmente, com a questão das exposições do Queermuseu e La Bête, progonizada por um homem nu? Toro transita por essas e outras questões sutil e magistralmente, como também são as metáforas das direitas e esquerdas radicais e desprovidas de estofo, respectivamente, com os agentes americanos e russos que, ambos, querem aniquilar a criatura. Mais atual? Impossível, ainda mais no nosso singular cenário. E Toro vai além, Toro vai ao âmago da questão: o amor, ou a sua ausência, como constituintes dos círculos identificados, e, vai ainda mais além, ilustrando que todo amor é factível e materializável, inclusive aquele entre uma simples e comum faxineira muda e uma incrível criatura. Simplesmente tocante.

A direção de Toro é irretocável em todos os sentidos, tanto nas escolhas de direção propriamente ditas, como também na harmoniosa e eficiente coordenação de todas as áreas técnico-artísticas, para as quais só existem elogios e vultos. A arte é belíssima, desde a escolha das cores, dos cenários e mobiliários, dos figurinos e adereços e, especialmente, da composição da criatura, que fica mais bela a cada minuto de projeção. A música é um espetáculo desde a do preâmbulo até a do final, destaque para a linda escolha de Chica Chica Boom Chic com a saudosa e talentosa pequena notável, Carmem Miranda. Emocionante.

A fotografia é sensacional e a edição eficiente. Hawkins está possuída em uma interpretação ímpar, mas Spencer e Jenkins não ficam nem um pouco atrás. Michael Shannon está em sua melhor atuação. O resto do elenco é excelente, entregando atuações profissionalíssimas.

A Forma da Água é um filme inesquecível, quem o assistir, vai, em algum momento ou outro no futuro, lembrar ou referenciar esta obra de arte que, merecidamente, levou o Leão de Ouro por melhor filme no Festival de Veneza. Em cartaz somente ontem no Festival do Rio. Infelizmente, só estreia em grande circuito em onze de janeiro, mas nem pensem em não assistir.

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