(Há spoilers conceituais) #Coringa deveria ser um filme de HQ, e, até certo ponto, é, mas Todd Phillips e Scott Silver, seus roteiristas, contam outra história dentro da história, e, em algum momento, suas narrativas não somente esmaecem a de Joker, como também a pervertem.
O roteiro conta o surgimento do “vilão” #Joker, mas repleto de tons heróicos. No texto, o verdadeiro antagonista é o capitalismo, na pele de Thomas Wayne, e Arthur Fleck, o futuro Coringa, uma vítima do sistema econômico que serve apenas aos ricos e relega os pobres ao abandono, às margens. Thomas, interpretado por Brett Cullen, é insensível, arrogante e, até, cruel, características, demasiadamente, acentuadas por sua atuação, inclusive assustador, é a face do sistema que subjuga a maioria da população, através da propriedade privada e da livre concorrência. Thomas Wayne, que, em subtrama envolvendo ele e a mãe de Fleck, é retratado como um monstro, imagem, essa, reforçada até o final, quando se vê o Coringa lendo uma dedicatória carinhosa assinada por “T.W.”, no verso de uma fotografia, e destituído de todo o seu altruísmo e de sua humanidade, é o vil capitalismo selvagem encarnado, tanto, que o destino da personagem não imbui qualquer choque, sofrimento, ou lamento. Já Arthur Fleck é uma vítima desse sistema econômico, que lançou Gotham às ruínas e ao desfortúnio, tanto, que no início do texto, a personagem Murray Franklin analisa a invasão da cidade por “ratos grandes”, outra metáfora para os capitalistas, e preconiza, que, para matá-los, serão necessários “gatos grandes”. E Fleck, agredido nas ruas; perseguido e enganado no trabalho; abandonado pelo sistema, que corta sua assistência social e seus remédios, pois já esteve institucionalizado, mas que também, quando presente, era mecânico e impessoal; abusado por sua mãe; rejeitado pelo pai; exposto e escarnecido pela imprensa, é o representante ideal, a vítima perfeita do capitalismo selvagem e de seu representante, Thomas Wayne. E, em incidente, em que morrem três representantes dessa elite, operadores do mercado financeiro, e, obviamente, funcionários de Wayne, a população se identifica com o palhaço assassino e se revolta contra o sistema, enquanto Fleck busca vinganças pessoais.
A direção de Todd Phillips é excelente, reforçando as desventuras de Arthur, mas que, tão repetitivas no roteiro, tornam a narrativa cansativa e lenta, especialmente na primeira metade da projeção. O texto ainda subestima o espectador quando faz um flashback para explicitar situação mais do que explicada. Joaquim Phoenix oscila entre muitas cenas brilhantes e algumas chatas e repetitivas, quantas vezes não vemos O Coringa dançar? Além disso, é monocromático, acentuando, na maior parte do tempo, a vitimização da personagem, reforçando o estereótipo do povo oprimido, enquanto Brett Cullen, o faz com o do capitalista opressor. Robert De Niro, o melhor em cena, brilha como Murray Franklin, e Frances Conroy está ótima como a passiva-abusiva Penny Fleck. A fotografia é excepcional, a música, excelente, e, bastante grave, acentua os dramas e as tensões, e a cenografia, os figurinos e a edição não ficam muito atrás.
A ascensão de um vilão, com tonalidade heróica, com uma mensagem clara, que agradará aos anticapitalistas, e que deveria preocupar aos outros, pois preconiza a desobediência civil contra o capitalismo selvagem, é o que traz o interessante Coringa. Vale assistir.
Em cartaz.
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