Uma biografia jamais será um registro fiel da vida de alguém, mas uma visão dessa – do autor, de suas fontes, sejam essas registros escritos ou fotografias, o próprio biografado ou pessoas próximas que possam oferecer relatos sobre a sua vida –, onde o biógrafo decide a extensão de sua história limitado apenas pelo seu olhar e a quantidade e qualidade das informações a que teve acesso, mas que nunca deixará de ser uma versão romanceada da vida de alguém, por mais compromisso com a verdade que se deseje ter. Uma cinebiografia, como Bingo – baseada na vida de Arlindo Barreto, o primeiro intérprete do palhaço Bozo, no SBT – além das restrições de sua versão impressa, está também atada à duração, uma factível com o veículo em questão, que, comumente, não passa de cento e vinte minutos, um padrão da indústria americana, raras as exceções.
Contar a vida de alguém em tão curto espaço de tempo é impossível, as escolhas dos roteiristas são ainda mais cruéis, pois têm que contar uma história que, além de conectar o espectador ao seu protagonista, o biografado, seja também cativante e prenda o espectador na cadeira por duas horas, sem que esse perceba que passaram. Bingo faz isso com grande habilidade.
Em primeiro lugar, ninguém tem dúvidas de quem se trata, mesmo que a personagem se chame Bingo e que, na época, ninguém soubesse, efetivamente, quem estava por trás de toda aquela maquilagem e debaixo daquela peruca. A história tem um fio condutor muito bem delineado que conduz o espectador pela ascensão, fama e declínio de Augusto à personagem, permeando em todas as fases o seu relacionamento com seu filho, sua mãe e sua futura esposa.
A primeira parte, a ascensão, é uma história de vitórias, de vencer o invencível, de ver a personagem encontrar o caminho e o tom certo para um palhaço roteirizado e americanizado que em nada tocava o coração das crianças brasileiras. De ver os bastidores da formação da personagem Augusto-Bingo e, de como esse conseguiu vencer não só as resistências de sua emissora, mas também a emissora líder de audiência no horário, de onde Augusto havia sido dispensado. Conta com uma singela e significativa participação de Domingos Montagner como o palhaço-mentor de Augusto, cuja carreira até então era predominantemente no mundo da pornochanchada.
Na segunda, a fama, Augusto enfrenta não só os dilemas de ser o anônimo atrás de Bingo, como também os efeitos dessa condição em seu relacionamento com seu filho e sua mãe e a consolidação de seu uso de drogas, iniciado na primeira parte dentro da própria emissora, e de seu abuso de bebidas alcoólicas.
E, a última e, talvez, a mais maçante de todas, mostra o seu declínio em seus vícios, o ápice da crise de seu relacionamento com seu filho, a perda de Bingo, que passa para outro ator, até a sua redenção, literalmente, na Igreja Batista.
A história é muito bem contada e amarrada, o filme não deixa nada a dever nos critérios técnicos, como som, fotografia, arte, edição, etc. aos filmes hollywoodianos, afinal a Warner avaliza a produção. A direção de Daniel Rezende é competente, mesmo em tomadas pouco convencionais, como a que sai da casa de Augusto, enquanto esse está ferido, e o encontra já deitado na cama do hospital. A reconstrução de época é primorosa, se não se interessar pela história, vale somente para ver a São Paulo dos anos oitenta. Vladimir Brichta está excelente como Augusto/Bingo, mas melhor como o segundo do que como o primeiro, pois deixa um pouco a desejar em cenas muito dramáticas, como o enterro de sua mãe. Contudo, como Bingo, Vladimir é um show à parte. Leandra Leal está bem no papel de Lúcia, mas ainda se percebe uma autoconsciência da câmera e de seus entornos entregue pela falta de foco em seu olhar em muitas cenas. Foi um prazer rever Ana Lúcia Torre em um papel significativo e perfeito para ela. Cauã Martins é a prova viva da escalação perfeita de um ator-mirim, Gabriel é extremamente cativante mesmo quando triste. Domingos Montagner tem aparição rápida e muito relevante. O único senão, incompreensível, é a escolha de Pedro Bial como o executivo da emissora concorrente. Bial, como ator, é péssimo, não convence de forma alguma e compromete o produto final. E, por último, é importante ressaltar a música, que é muito bem planejada e acentua a dramaticidade com muita oportunidade.
Apesar de não ter assistido a todos os filmes que podem ser indicados à Academia para uma posterior indicação ao Oscar, dos que assisti, Bingo é, sem dúvidas, o melhor candidato, além de parecer ser o candidato ideal, pois tem todos os elementos que Hollywood ama, uma história real, um drama com uma personagem infantil no olho do furacão, tombos e superações, enfim, tudo o que faz um espectador ser cativado por quase duas horas.
PS: Em cartaz.
TRAILER